Conto – A mulher que não queria mais falar

Capítulo 1

Sofia não planejou o silêncio.

Ele chegou como uma exaustão invisível — daquelas que se acumulam entre uma louça suja, um banho dado com pressa e mais uma noite mal dormida.

Ela simplesmente parou de falar.

Não foi de repente. Foi aos poucos.

Um “sim” substituído por um gesto com a cabeça. Um “não aguento mais” engolido com um suspiro. Um “você viu o que eu pedi?” que ficou preso entre os dentes.

As palavras foram secando.

Marcos, seu companheiro, demorou a perceber. Achou que era uma birra. Um dia difícil. Uma TPM.

Mas os dias passaram. E ela não voltava a falar.

Ela continuava fazendo tudo.

Preparava os almoços. Conferia as mochilas. Respondia com os olhos. Com bilhetes escritos à mão. Com silêncio.

Ele tentou provocar.

— Você vai ficar calada até quando?
Nada.
— Isso é alguma punição?
Ela apenas o olhou.
— Você quer me enlouquecer?
Ela foi embora da sala.

Não era um jogo. Nem uma punição. Era sobrevivência. Uma tentativa de escapar do apagamento.

Sofia não estava brava. Estava ausente. De si. Da voz. Do corpo.

Um dia, escreveu num papel:

“Vou ficar um mês sem falar.”

Colou na geladeira.
Ninguém comentou.

As crianças acharam estranho. Depois brincaram. Depois esqueceram.

Mas ela seguiu.

E ali, naquele vazio imposto, começou a se escutar de verdade pela primeira vez em muitos anos.


 

Capítulo 2

Nos primeiros dias, o silêncio de Sofia parecia uma brincadeira.

Marcos revirou os olhos. As crianças acharam engraçado.
— A mamãe perdeu a voz?
Ela apenas apontava para o bilhete na geladeira.
Eles riram. E seguiram com a vida.

Mas os dias foram passando.
E ela seguia em silêncio.

Fazia tudo normalmente.
Preparava o café. Ajudava com as tarefas da escola. Lavava a roupa.
Mas os lábios não se abriam.

No lugar das palavras, bilhetes.
“Seu lanche está na mochila.”
“Você foi muito corajosa hoje.”
“Obrigada por colocar o prato na pia.”

Gestos calmos.
Olhares atentos.
Uma nova linguagem emergia — mais lenta, mais delicada.

Marcos começou a se irritar.

— Isso é uma provocação?
Ela o olhava em silêncio.
— Você quer me punir? Porque eu não sei nem do que você tá falando!

Ela pegava um caderninho e escrevia com calma:
“Não é sobre punição. É sobre limite.”

Ele bufava.
— Limite de quê? A gente tá junto. Você não pode simplesmente desligar a comunicação assim!

Mas podia.
E fez.

As crianças, depois do estranhamento inicial, começaram a observar mais.
Aprenderam a olhar para as expressões da mãe.
A escutar o corpo dela.
A se comunicar com mais presença.

— Mamãe, hoje você tá com cara de chuva — disse a mais nova, certa tarde.

Sofia sorriu com os olhos.
Chorou no banheiro.

Nesse mês sem palavras, algo começou a se reorganizar por dentro.
Ela sentia menos peso no maxilar.
Menos tensão nos ombros.
Menos aquela culpa automática de não conseguir dar conta de tudo.

Dormia melhor.
Sentia o próprio cheiro de novo.
Voltou a sonhar.

Enquanto isso, Marcos alternava entre raiva e tentativa.

Oferecia café.
Comprou uma flor.
Chamou pra sair.

Ela agradecia com bilhetes. Mas não falava.

Uma noite, ele explodiu:

— Você tá me deixando de fora de tudo. Como se eu fosse um estranho!

Ela escreveu:
“É exatamente assim que eu me senti por muito tempo.”

E então, ele calou.
Pela primeira vez, começou a escutar — sem esperar resposta imediata.
Sem se defender.

O silêncio dela já não era ameaça.
Era espelho.


 

Capítulo 3

Marcos não sabia mais como reagir.

O silêncio de Sofia já não era incômodo. Era um buraco. Um espaço aberto entre os dois. E, dentro dele, ele via coisas que nunca tinha notado.

O jeito como ela levantava antes de todo mundo.
Como organizava o dia inteiro sem errar um horário.
Como sorria com os filhos, mesmo exausta.
Como ela não era ouvida — só respondida.

Numa manhã de sábado, ele se sentou em frente a ela na mesa da cozinha. Ela comia devagar, em silêncio. Ele apoiou os braços, respirou fundo.

— Você acha que eu não vejo?
Ela parou, sem levantar os olhos.

— Eu vejo sim, tá? Eu vejo o que você faz. E também vejo que eu me acomodei. Que você virou essa base silenciosa que segura tudo. E eu… eu deixei.

Ela levantou o olhar. Calmamente.

— Mas eu te amo — ele continuou. — Só que eu me perdi. E você também. E quando você parou de falar… eu percebi que eu nunca tinha escutado de verdade.

Ela pegou o caderno. Escreveu com firmeza:
“Eu não parei por raiva. Eu parei por cansaço. E por medo de sumir.”

Ele leu, com olhos marejados.

— Eu sei. E desculpa por só entender agora.

Ela não escreveu nada. Mas seus olhos, ali, disseram tudo.

Naquela noite, ele ficou em silêncio com ela. Sentado no sofá. Sem celular. Sem TV. Sem tentar consertar nada.
Apenas ficou.

E, naquele silêncio compartilhado, começou a nascer outra coisa.
Um espaço mais justo.
Mais verdadeiro.

Sofia sabia: ele ainda tinha muito a mudar.
Mas pela primeira vez em muito tempo, ela sentia que estava sendo vista.
Sem precisar gritar.


 

Capítulo 4

No trigésimo dia, Sofia falou.

Não foi um discurso.
Não foi uma catarse.
Foi um simples:

— Eu não quero mais viver pela metade.

Marcos estava ao lado. Olhou pra ela como quem vê um som nascer.

— Eu não quero mais responder “tá tudo bem” quando não está.
— Não quero mais engolir meu mal-estar pra manter o clima leve.
— Não quero mais me calar pra ser aceita.

Ele não interrompeu. Só escutou.

— Eu quero espaço. Quero pausa. Quero ser escutada quando digo “não”. Quero que minha calma não seja confundida com desistência. Quero poder existir — sem me apagar.

Ele assentiu.

— Eu ainda tô aprendendo — disse. — Mas tô aqui.

Nos dias que seguiram, ela voltou a falar.
Mas não como antes.

Ela dizia menos. Mais devagar. Mais direto.
Dizia “hoje não”, “me escuta primeiro”, “isso me cansa”, “isso me alegra”.

E, às vezes, escolhia o silêncio de novo.
Mas não como fuga. Como escolha.

Marcos passou a perguntar de verdade. A esperar a resposta.
Nem sempre acertava.
Mas tentava.
E ela via.

Eles não viraram o casal ideal.
Mas pararam de viver no automático.

Sofia voltou a rir.
A dormir melhor.
A ocupar espaço.

Ela não queria um troféu.
Queria dignidade no dia a dia.
E estava conseguindo.

O silêncio que antes era grito virou ponte.
E, no meio do caminho, os dois estavam mais inteiros.

Talvez não dure para sempre, ela sabia.
Mas agora, ao menos, ela não precisa mais se calar pra ser amada.


 

Este conto aborda os temas da sobrecarga emocional e do silêncio como forma de reencontro. Continue sua leitura explorando outros artigos neste blog, compartilhe e comente.

Quem é Fanny Clair?

Sou Fanny Clair, francesa vivendo no Brasil desde 2014. Casada e mãe de dois filhos pequenos, sou psicanalista especializada nas questões feminina, sexóloga e terapeuta de casal.

No âmbito da minha prática, associo a psicanálise à terapia cognitivo-comportamental (TCC) para oferecer um acompanhamento eficaz.

Além disso, sou a fundadora do blog "Sabedoria Coletiva", onde compartilho reflexões e recursos sobre o bem-estar emocional.

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