Conto – O homem invisível de domingo

Capítulo 1

Inês odiava os domingos.

Não pelos motivos comuns — fim do fim de semana, lista de compras, silêncio estranho da vizinhança. Ela odiava os domingos porque era o dia em que Marcelo desaparecia.

Ele nunca dizia “vou sair”. Dizia:
— Vou dar uma caminhada.
Ou, às vezes, nem dizia nada. Beijava de leve o alto da cabeça dela, calçava os tênis e saía.

Ela havia aprendido a não perguntar. No começo, questionava onde ele ia. Ele respondia vagamente: “por aí”. Perguntava se ia encontrar alguém, correr, ler em algum parque. Ele dizia: “preciso de um tempo.”

E desaparecia.
Saía por volta das dez da manhã. Voltava antes das oito. Às vezes mais tarde. Nunca explicava nada. Não mandava mensagem. O celular ficava desligado. E ela? Ela ficava ali, remoendo.

No início, Inês achou que era outra mulher.

Começou a observar as roupas dele, os cheiros, o ritmo da respiração quando voltava. Nada. Mexeu no celular, olhou e-mails, vasculhou as abas abertas do navegador. Nada. Um dia, tentou segui-lo, mas ele mudou de caminho duas vezes e ela perdeu o rastro.

Então desistiu.

Mas a irritação persistia. Não era só a ausência, era o mistério. Era essa parte da vida dele que parecia não incluir ela.

Eles estavam juntos havia nove anos. Era uma relação construída, sólida. Dois filhos. Projetos. Um carinho maduro. Desejo, às vezes. Mas aquele “domingo” havia virado um abismo.

— Você vai sair de novo hoje? — ela perguntou certo dia, sabendo a resposta.
— Vou.

Ele disse sem olhar nos olhos. Apenas colocou o moletom, como se fosse parte de um ritual médico.

— Você sabe que isso me machuca, né?
— Eu sei.

E foi assim mesmo.

Inês passou o resto do dia inquieta. Colocou uma música. Arrumou a casa com mais força do que o necessário. Brincou com os filhos, depois os deixou vendo desenho. Deitou no sofá. Olhou para o teto por tempo demais.

Não era raiva porque ele saía. Era raiva porque ele não a levava junto. Porque não dividia. Como se houvesse uma parte dele que ela não tinha o direito de conhecer. Como se ele lutasse pra não se perder — mas sozinho.

E o mais estranho é que ela o conhecia. Sabia do pai frio, dos silêncios de infância, da dificuldade que ele tinha de nomear o que sentia. Sabia dos refúgios dele: os livros, as corridas, os silêncios. E talvez esse “domingo” fosse só mais um.

Mas ela queria entender. Queria que aquele espaço deixasse de ser segredo. Queria ouvir, participar, ver.

Queria parar de sentir que, todo domingo, o homem que dormia ao lado dela ia embora — e voltava sempre um pouco mais distante.


 

Capítulo 2

No domingo, Marcelo acordava antes do sol.

Sem despertador, sem pressa. Era como se o corpo soubesse que aquele dia era diferente. Levantava devagar, cuidando para não fazer barulho. Inês ainda dormia.

Na cozinha, preparava um café forte, colocava no cantil. Duas fatias de pão. Uma garrafinha d’água. Um casaco, um boné, e nada mais. Sem celular. Sem livro. Sem relógio.

Saía de casa, caminhava por três quarteirões, depois virava à esquerda e pegava uma bicicleta antiga que deixava escondida na garagem de um amigo. Dali pedalava por quase uma hora. Atravessava bairros, saía da cidade, entrava por estradas de terra.

Chegava sempre no mesmo lugar: uma clareira entre duas colinas. Difícil de encontrar se não soubesse o caminho.

No meio da clareira, uma cabana simples. De madeira crua, sem porta, sem móveis. Às vezes um pequeno fogo queimando no centro.

Ali, estavam eles. Nunca mais de sete ou oito homens. Idades diferentes, jeitos diferentes. Alguns vinham de carro. Outros, a pé. Alguns em silêncio absoluto. Outros, com os olhos cheios d’água.

Marcelo se sentava. Não cumprimentava. Ninguém precisava disso.

Não havia conversa. Não havia liderança. Não havia explicação.

Havia presença.

Homens sentados em roda. Alguns olhavam o fogo. Outros fechavam os olhos. Às vezes alguém deixava uma pedra no chão. Às vezes, um chorava — e ninguém perguntava por quê.

Era cru. Real. Sem performance. Sem papel social. Ali, Marcelo não era pai. Nem marido. Nem profissional. Nem “homem forte”. Era só ele. Nu de tudo.

Ficava ali por horas. Às vezes duas. Às vezes cinco. Ia embora quando sentia que bastava. Sem se despedir. Como quem fecha um livro no momento exato da última frase.

Nunca contou aquilo a Inês.

Não porque quisesse esconder. Mas porque não sabia como explicar. Como ela reagiria se ele dissesse:
— Eu sento com outros homens no meio do mato e ninguém fala nada?

Ela talvez achasse estranho. Talvez quisesse entender demais. Ou, pior, participar.

E aquele era o único lugar onde ele não precisava ser compreendido. Apenas ser.

Ali, ele não precisava “melhorar”. Nem se justificar. Nem se posicionar.

Mas, todo domingo à noite, ao voltar, ele via o olhar dela. Sabia que aquilo estava criando uma distância. Que ela estava se calando cada vez mais. Que o espaço de silêncio que ele cultivava começava a vazar para dentro do relacionamento.

Sabia que, cedo ou tarde, teria que falar.

Só não sabia se conseguiria.


 

Capítulo 3

Naquele domingo, Inês tomou uma decisão.

Não foi impulso. Foi precisão. Depois de tantos meses engolindo dúvidas e arrumando desculpas para não explodir, ela acordou antes dele, vestiu-se sem fazer barulho, preparou o próprio café. Quando Marcelo se levantou, ela já estava pronta — como se fosse ao mercado, como se não estivesse prestes a atravessar um limite.

— Vai sair hoje? — perguntou, como se fosse só mais uma pergunta qualquer.
— Vou, sim — respondeu ele, tentando parecer natural.
— Tá bom.

Ele hesitou, como se tivesse sentido algo estranho naquele “tá bom”. Mas seguiu com o ritual. Pegou o casaco, o cantil, e saiu.

Inês esperou cinco minutos, pegou as chaves, trancou a porta e chamou um carro por aplicativo.

Ela já tinha feito o mapa dos caminhos possíveis, cruzado dados de horários, comportamentos, distâncias. Sabia que não ia encontrar outra mulher. Mas precisava ver com os próprios olhos. Não porque desconfiava — mas porque doía demais não saber.

O carro parou na beira de um campo aberto. Ela desceu, agradeceu, e seguiu a pé, com o vento cortando o rosto. Caminhou por trilhas de terra e mato alto até enxergar a clareira.

E ali, no centro da cena, estava Marcelo.

Sentado com outros homens, em círculo. Silêncio. Um fogo fraco. Um deles olhava para o chão como se escutasse o que ninguém dizia. Marcelo estava… em paz. Mais do que ela se lembrava de tê-lo visto nos últimos anos.

Ela ficou atrás de uma árvore, observando de longe.

Sentiu raiva, sim. Mas era uma raiva estranha. Não por causa de uma mentira. Mas por causa de uma verdade que ele tinha guardado só para ele. Por esse pedaço de mundo onde ela não era convidada. Por esse Marcelo que ela nunca conhecera.

Sentiu também um aperto no peito. Porque, no fundo, ela entendia. Ela também precisava de silêncio. De pausa. De algo que não fosse o peso constante de ser tudo para todos.

E sentiu vergonha. Porque enquanto ela inventava desculpas para não se cuidar, ele — mesmo sem saber explicar — criara um espaço só dele. E nunca tivera coragem de dividir.

Quando ele foi embora, ela não tentou segui-lo. Voltou a pé. Sozinha. Quatro horas de caminhada. Para entender. Para processar.

À noite, ele entrou em casa e a encontrou sentada, olhando para ele.

— Eu sei onde você vai.

Ele parou. A mochila ainda nas costas.

— Você me seguiu?
— Sim. Porque você nunca me deixou entrar.

Ele deixou a mochila no chão. O corpo pesado. O olhar cheio.

— Eu não sabia como explicar.
— Você não tentou.

Silêncio.

Ela continuou:

— Eu não tô brava porque você vai. Tô ferida porque lá você é inteiro, e aqui… você esconde essa parte de você.

Ele respirou fundo. Sentou devagar no sofá, em frente a ela.

— Lá… eu não preciso ser nada. Não preciso responder nada. Nem sustentar nada.

Ela ficou calada. Entendeu.

— E aqui? — perguntou depois de um tempo. — Aqui você sente que precisa?

Ele balançou a cabeça. Os olhos marejados.

— Eu não queria que fosse assim.

Ela também.

Mas era.


 

Capítulo 4

Três meses se passaram.

Marcelo continuou indo aos domingos. Inês nunca mais perguntou. E ele, um dia, deixou de esconder. Não porque tenha contado tudo, palavra por palavra. Mas porque passou a voltar diferente — mais inteiro, mais presente. Ela sentia.

E ela também começou a sair.

Um dia, se inscreveu num curso de escrita numa biblioteca perto de casa. Era só uma tarde por semana. Mas ali, em meio a mulheres desconhecidas e folhas em branco, ela reencontrava algo que não sabia que tinha perdido: o direito de ser só ela, sem papel de mãe, de esposa, de cuidadora.

Escrevia coisas que nunca disse em voz alta. Lembranças da infância. Medos. Pequenos desejos. Rabiscava frases soltas e chorava baixinho no banheiro. Voltava para casa com as mãos manchadas de tinta e o peito um pouco mais leve.

Numa dessas noites, chegou e encontrou Marcelo jantando com as crianças. Ele sorriu. Ela sentiu que aquele sorriso não era automático. Era de quem realmente viu.

— Você tá com uma energia diferente — ele disse.
— Eu acho que voltei pra mim — respondeu.

No domingo seguinte, ela preparou um café e entregou a ele antes de sair.

— Boa caminhada — disse.
— Obrigado.

Ele hesitou na porta. Depois olhou para ela, sério, verdadeiro.

— Um dia, eu queria te levar lá.
— Não precisa — respondeu ela, sorrindo. — Aquele lugar é seu. Agora eu tenho os meus.

Ele assentiu. Pela primeira vez, realmente compreendeu.

Eles não tentavam mais preencher cada vazio um do outro. Não buscavam mais fusão. Mas estavam mais juntos do que nunca.

No fim da tarde, foram caminhar até a praça. Ele segurava sua mão, e ela contava sobre o conto que havia escrito. Ele escutava. Não tentava interpretar. Só escutava.

Eles riram.

E no silêncio que vinha depois, havia algo novo. Um espaço onde os dois podiam caber — sem se apagar, sem se abandonar.

Um espaço de dois inteiros.


 

Este conto aborda os temas da solidão emocional no casal e da liberdade dentro da relação. Continue sua leitura explorando outros artigos neste blog, compartilhe e comente.

Quem é Fanny Clair?

Sou Fanny Clair, francesa vivendo no Brasil desde 2014. Casada e mãe de dois filhos pequenos, sou psicanalista especializada nas questões feminina, sexóloga e terapeuta de casal.

No âmbito da minha prática, associo a psicanálise à terapia cognitivo-comportamental (TCC) para oferecer um acompanhamento eficaz.

Além disso, sou a fundadora do blog "Sabedoria Coletiva", onde compartilho reflexões e recursos sobre o bem-estar emocional.

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