Capítulo 1
Clara nunca foi de falar muito, mas de uns tempos pra cá, virou outra coisa. Ela falava com pedras.
Não em voz alta. Não como se fala com cachorro ou criança. Era diferente. Ela passava o dedo sobre elas, uma a uma. Guardava cada pedra em saquinhos de pano. Alinhava as mais pequenas em bandejas de madeira. De vez em quando, ficava apenas parada diante delas — olhando — por minutos.
Seu marido, André, achava estranho. No começo fazia piada. Depois, preferiu não comentar. Ultimamente, ele nem olhava mais para as estantes da sala, onde Clara organizava seus cristais, suas pedras pretas da Islândia, seus quartzos, suas obsidianas, suas pedras sem nome.
— Mais uma? — ele murmurou, certa noite, vendo uma nova pedra sobre a mesa da cozinha.
Clara não respondeu. Pegou a pedra com delicadeza e reposicionou alguns milímetros à esquerda. O gesto era quase cerimonial.
Eles estavam juntos havia doze anos. Tinha sido bonito. Forte. Ela, fotógrafa inquieta. Ele, engenheiro metódico. Dois filhos. Viagens. Muita troca. Depois… o tempo. O peso da rotina. A exaustão muda dos dias.
André trabalhava demais. Chegava tarde. Vivia no celular. Clara pausou sua carreira para cuidar das crianças. Ela dizia que era temporário. Que um dia voltaria a fotografar. Mas os meses viraram anos. E a câmera, poeira.
As pedras voltaram devagar. Primeiro, um pedacinho de granito que ela achou com o filho mais velho. Depois, um cristal de presente. Depois, compras. Leitura. Vídeos. Cursos. Um mergulho.
André tentava respeitar. Mas não compreendia.
— Você sabe que isso tudo é só simbólico, né? — ele disse uma vez, com leve ironia.
— Amar também é, às vezes — ela respondeu.
Naquela manhã, Clara recebeu uma pedra vinda da Mongólia. Preta, densa, pesada. Quase metálica. Quando segurou, sentiu algo vibrar na mão esquerda. Passou o dia com ela no bolso. À noite, escreveu num caderno:
“Preciso ir.”
Não explicou. Nem pra onde. Nem por quê. Mas algo dentro dela tinha se movido. Como uma rachadura. Silenciosa, mas profunda.
Capítulo 2
Desde que recebeu a pedra negra, Clara passou a andar mais devagar.
Dentro de casa. Na calçada. No mercado. Como se cada passo precisasse ser pesado, sentido. Como se seu corpo estivesse tentando falar por ela.
André acelerava. Cada vez mais. Trabalho, e-mail, áudio, reunião. Correria.
Eles mal se olhavam. As conversas eram práticas:
— Você pega as crianças?
— Hoje não dá. Tem reunião. Vê com a tua mãe.
De noite, Clara sentava no chão da sala. Pegava as pedras e colocava uma por uma sobre a toalha. Não sabia bem o que fazia. Mas precisava fazer.
André via. Mas fingia não ver.
Até que, numa sexta-feira, ele explodiu:
— Que fuga é essa, Clara? Você acha que vai resolver tudo olhando pedra?
Ela não se abalou.
— Não é fuga. É escuta.
— Escuta do quê?
— De mim. De algo que ficou muito tempo calado.
Ele passou a mão no rosto, frustrado.
— E eu? Não sou digno de escuta?
Ela o olhou com ternura, mas sem suavidade.
— A gente não se escuta há muito tempo, André.
No dia seguinte, ela comprou uma passagem para a Mongólia. Sem anunciar. Apenas disse que faria uma viagem sozinha. Que precisava.
André não protestou. Só perguntou:
— Você volta?
Ela respondeu:
— Só se eu conseguir voltar pra mim também.
Capítulo 3
O avião pousou sob um céu seco e azul metálico. Ao pisar no chão da Mongólia, Clara sentiu que estava muito longe de tudo. Não só geograficamente. Longe das cobranças, do barulho cotidiano, das crianças chamando, dos pratos na pia, da conta de luz. Longe de si mesma — mas também mais perto.
Ela não tinha um roteiro. Apenas um nome: Baatar. Um guia local que falava pouco inglês, recomendado num fórum obscuro de colecionadores de minerais. Ele a esperava com uma placa improvisada na saída do aeroporto. Apenas disse “Lago Uvs”, e ela assentiu. Sabia que era lá que precisava ir — o lugar de onde viera a pedra negra.
Foram dois dias de estrada em silêncio, cruzando campos infinitos, vales ressecados, montanhas frias e aldeias que pareciam paradas no tempo. Dormiam em tendas, comiam arroz e carne de carneiro, bebiam chá salgado. Clara tentava absorver tudo — o cheiro da lã, o gosto do vento, o ranger das rodas no cascalho.
À noite, ela sonhava. Sonhos intensos, às vezes assustadores. Uma voz chamava seu nome, mas não era com palavras. Era como um som subterrâneo, antigo. Às vezes, via André nos sonhos. Ouvia o choro de um dos filhos. Outras vezes, era só o som do vento atravessando a planície, como se soprasse dentro dela.
No terceiro dia, chegaram ao lago. A água era quase imóvel. As bordas estavam congeladas. Baatar apontou uma formação rochosa e disse algo que ela não entendeu — mas compreendeu. Foi ali que encontraram pedras como a que ela carregava no bolso.
Clara se aproximou da rocha, tocou a superfície fria com a mão aberta e se ajoelhou. Encostou o rosto na pedra. E chorou.
Não um choro desesperado. Mas profundo. Como se viesse de um lugar anterior ao cansaço, ao casamento, à maternidade. Um choro que parecia pertencer a todas as mulheres da história. Ou a nenhuma.
Ela ficou ali por horas.
Ao anoitecer, pediu para dormir sozinha.
Montou sua pequena barraca perto do lago. Acendeu uma fogueira. Tirou do bolso suas pedras — as que trouxe do Brasil — e fez um círculo com elas. No centro, a pedra negra da Mongólia.
Ficou em silêncio por muito tempo. Depois começou a falar. Não com a boca. Com o corpo. Com o peito. Com a alma. Como se aquilo que precisava ser dito não coubesse em palavras humanas.
Falou de seu corpo esquecido. Do medo de não ser mais vista. Do vazio. Da raiva engolida. Da vontade de sumir. Da culpa. Do amor que ainda existia, mas estava soterrado. Do prazer que tinha deixado de sentir. Da mulher que foi, e que quase deixou de ser.
Quando a fogueira apagou, ela dormiu com as pedras junto ao ventre. Pela primeira vez em muitos anos, dormiu em paz.
No dia seguinte, voltou.
Não era uma mulher transformada. Não era outra pessoa.
Mas estava reconectada.
Capítulo 4
Clara chegou em casa ainda de madrugada. O silêncio da casa era diferente daquele das estepes — mas, pela primeira vez em muito tempo, ela não teve medo dele.
Tirou os sapatos, deixou a mala encostada no canto e ficou parada na sala escura por alguns minutos. Observava a casa como se a visse pela primeira vez. Como se voltasse de um lugar onde o tempo se movia de outra forma.
André dormia. Ela não o acordou.
Na manhã seguinte, ele a encontrou na cozinha. Clara segurava uma caneca com as duas mãos, os olhos voltados para fora da janela. Os cabelos estavam soltos, com cheiro de vento e fumaça. Ela parecia a mesma — mas havia algo diferente.
— E aí? — ele perguntou, sem ironia. — Como foi?
Ela virou devagar e disse apenas:
— Amplo. Silencioso. Vivo.
Ele assentiu, sem saber o que dizer.
Não falaram muito naquele dia. Nem nos seguintes. Mas o silêncio agora era outro. Não era mais o silêncio da ausência. Era o silêncio da escuta.
Ela desfaz a mala aos poucos. Tira uma a uma as pedras que trouxe. Coloca sobre a mesa. Os filhos se aproximam, curiosos. Ela conta histórias: do frio, dos cavalos soltos, do chá com gosto estranho, do vento que fazia barulho dentro da tenda. Eles riem, tocam nas pedras, fazem perguntas. André observa.
À noite, ela pega uma caixa de madeira e guarda todas as pedras dentro. Coloca no alto da estante.
Não era um adeus. Era um gesto de transição.
— Você não vai mais usar? — André pergunta.
Ela pensa um pouco antes de responder.
— Agora eu escuto de outros jeitos.
Ele franze o cenho.
— Os outros?
— Nós. Eu. Você. O tempo. O que não se fala. Eu aprendi a escutar até isso.
Ele abaixa os olhos. Depois de um tempo, diz:
— Eu também tenho coisas pra dizer. Mas não sei como.
Ela sorri de leve.
— Então não diz. Caminha comigo.
Saem juntos, sem pressa. É fim de tarde. Clara segura sua mão — uma mão conhecida, mas com outro peso. Como se agora, finalmente, estivesse presente.
Andam em silêncio. E na última curva antes de voltarem, Clara enfia a mão no bolso e segura com carinho uma pedra pequena, azul, que trouxe do lago. Ela vibra leve. Como uma lembrança. Como uma promessa.
Este conto aborda os temas do silêncio no relacionamento e do reencontro com a própria identidade. Continue sua leitura explorando outros artigos neste blog, compartilhe e comente.